A relação da direita populista com o videogame

João Varella
6 min readSep 24, 2021
Ilustração: Batista

Videogame é uma linguagem artística ampla. Conta com reconhecidas capacidades de socialização, aprendizagem e narrativas. Há todo um universo a ser discutido seja do ponto de vista econômico, esportivo, por aí vai. Como toda esfera de discussão pública, videogame está sim atravessado pela política. E o recorte que separei é o da relação da direita populista com o mundo dos games.

Um fato que exemplifica essa aproximação se deu logo depois do carnaval de 2020. Deputados federais se dispuseram a cuidar das políticas públicas relacionadas ao videogame, embora não tivessem nenhum vínculo com o setor. O presidente da chamada Frente Parlamentar Em Prol dos Esportes Eletrônicos e Games é o coronel do Exército João Chrisóstomo de Moura, deputado pelo PSL. Ele também participa das chamadas bancadas da bala e da Bíblia. Abaixo de Chrisóstomo na hierarquia do grupo estão Aline Sleutjes e Luiz Lima. Todos são deputados filiados ao PSL, o partido que elegeu Jair Messias Bolsonaro presidente da República.

Ilustração: Marcus Penna

Bolsonaro é o mesmo que abriu guerra contra praticamente todos os segmentos de arte e cultura. Seu governo rebaixou o Ministério da Cultura a secretaria, atrasa e bloqueia repasses. Em contrapartida, o videogame recebe afagos.

A escalada dos políticos conservadores nos videogames foi percebida nas eleições municipais. Luiz Lima, o mesmo da tal frente do videogame, foi candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, sede política do clã Bolsonaro. Em São Paulo, o candidato mais alinhado com o bolsonarismo era Celso Russomanno, que chegou a liderar as primeiras pesquisas de intenção de voto. Ele prometeu “professores de games” nas escolas municipais e atendimento aos “atletas esportivos” e “atletas de games”.

Ilustração: Marcus Penna

Games são parte da estratégia da alt-right, uma nova direita, populista, que surgiu nos Estados Unidos na década passada. Para entender a origem disso, voltamos lá para 2006. Antes de ser preso e posteriormente solto por Donald Trump, antes de comandar a campanha vitoriosa de 2016 à Casa Branca, Stephen Bannon conseguiu arrecadar investimentos milionários para financiar um empreendimento. Com sede em Hong Kong, essa empresa era especializada em vender bens virtuais de jogos.

World of Warcraft, jogo então com 10 milhões de assinantes, era a especialidade da firma. Muitos não se divertem com tarefas repetitivas para melhorar o personagem, ou não tem paciência. Para resolver isso, apelavam a empresas como a de Bannon. A diferença de fuso horário ajudava nos negócios. Enquanto o jogador ocidental dormia, um oriental trabalhava.

Ilustração: Batista

Bannon tirou importantes lições da experiência. Segundo o livro Devil’s Bargain (“Barganha do Diabo”, em tradução literal) — escrito por Joshua Green, a experiência com World of Warcraft, “forneceu uma espécie de estrutura conceitual que ele [se refere a Steve Bannon] mais tarde utilizaria para construir o público do Breitbart News e, em seguida, para ajudar a organizar os exércitos online de trolls e ativistas que invadiram a política nacional e ajudaram a dar origem a Donald Trump”.

O Breitbart é um site de notícias, opiniões e comentários de extrema-direita fundado em 2007 nos Estados Unidos. Os elementos que constituem uma comunicação extremista e radical estão lá: não buscam o outro lado, vedam o chamado espaço para o contraditório, uso ostensivo de palavrões e ofensas, executam ataques pessoais a desafetos, em especial da imprensa, assassinam reputações. Bannon é um estrategista de conteúdo, sabe que os algoritmos privilegiam esse tipo de comunicação extremista.

Ilustração: Batista

Um escândalo envolvendo videogames deu a Bannon a chance de posicionar o Breitbart como referência extremista. O caso em questão é o Gamergate. Esse é um evento bastante extenso. Em linhas gerais, o Gamergate teve como estopim um rancoroso post sobre o término de um namoro. Entre as acusações, o rapaz dizia que sua ex se relacionou com um jornalista para obter reportagens e resenhas favoráveis a um jogo que ela tinha criado.

Os gamers radicalistas viram no texto uma suposta prova de corrupção da mídia. O jornalista em questão nunca resenhou o jogo, mas a verdade nesse tipo de movimento é o que menos importa.

Dados pessoais da desenvolvedora circularam pelos fóruns da internet. Feministas e mulheres vinculadas ao mundo dos videogames foram atacadas. O New York Times qualifica o Gamergate como a máfia online que criou o manual para a guerra cultural.

Ilustração: Marcus Penna

O livro Devil’s Bargain mostra que Bannon queria, “se conectar com essas crianças”. Diz ele: “Você pode ativar um exército. Eles entram por meio do Gamergate ou qualquer outra coisa e então se voltam para a política e Trump”. Bannon soube capitalizar um ressentimento que ronda parte da comunidade do videogame, uma sensação de incompreensão.

O Breitbart catapultou Bannon à posição de conselheiro e estrategista de Trump na campanha de 2016. Virou referência para toda a direita populista no mundo, incluindo aí o clã Bolsonaro.

Bannon chamou Jair de “brilhante” e “sofisticado”. Estreitou laços com ministros e filhos. No começo de 2019 ele nomeou Eduardo Bolsonaro embaixador sul-americano do The Movement.

Não é possível afirmar que Bannon deu conselhos específicos sobre videogame, mas a postura de Bolsonaro mudou. Em 2013, Bolsonaro disse que o videogame era um crime, que não ensinam nada. Anos mais tarde, após ser eleito presidente, Bolsonaro divulgou um vídeo em que jogava Farpoint no PlayStation VR, o aparelho de realidade virtual da Sony. Já empossado, usou música do Sonic, o mascote da Sega, em um vídeo.

Jair não está sozinho na mudança de postura. Boris Johnson, o primeiro-ministro da Inglaterra, o cara do Brexit, foi outro que mudou sua postura. Em 2006, escreveu que “jogos de computador apodrecem o cérebro”. Culpava principalmente empresas japonesas, Nintendo e Sony. Anos mais tarde apoiou um Festival de Games na cidade, apareceu em uma publicidade oficial como um personagem de Minecraft.

Voltando ao Brasil: A pauta gamer surgiu com tudo em julho de 2019, quando Bolsonaro interagiu nas redes sociais com jogadores do e-sport no Brasil. Um dos e-atletas mais famosos do Brasil, Gabriel “FalleN” chegou a receber uma ligação do presidente.

Semanas depois, Bolsonaro assinou um decreto que reduziu a tributação de games. Bolsonaro repetiria o ato em 2020. Em consequência disso, Sony e Microsoft reduziram o preço sugerido de seus consoles, aguardados ansiosamente pelos jogadores e até agora escassos no mercado em razão da alta demanda. O clã Bolsonaro tratou de colher os dividendos políticos.

Quem toca o e-sport na família é Jair Renan Bolsonaro. Streamer que chegou a ser banido da plataforma Twitch por disseminar informações falsas. Ele fez uma visita a Mario Frias, secretário especial da Cultura. “O futuro do ‘e-sport’ sendo pautado”, disse o filho 04 no Instagram.

Sinais indicam que outros campos políticos apertaram o start. Na Câmara Municipal de São Paulo foi formada a Frente Parlamentar de Apoio ao Setor de Games e Jogos Eletrônicos, composta por membros de centro e esquerda. Em agosto foi a vez da formação da Frente Parlamentar de Games e Jogos Eletrônicos em Santa Catarina encabeçada pelo deputado petista Fabiano da Luz.

Já não era sem tempo. Segundo pesquisa BGS/Datafolha, 67 milhões de brasileiros com mais de 12 anos têm hábito de jogar videogame em seu tempo livre, um terço desse total todos os dias. Um número decisivo para qualquer pleito democrático.

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Este texto foi apresentado na mesa de abertura do seminário “Games, Comunicação e Política”, da FGV DAPP, em 28 de janeiro de 2021. As ilustrações de Marcus Penna feitas especialmente para uma reportagem sobre esse tema que escrevi para a revista Elástica. Os cartuns do Batista foram extraídos de uma edição de sua newsletter dedicada à relação entre a extrema-direita e games.

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