Você está no Rio [trecho de livro inacabado]

João Varella
4 min readJul 15, 2021
Este texto é um trecho de um ensaio maior que estou a escrever. Foi recentemente publicado na revista A Zica #6 com ilustrações de Cynthia Bonacossa

Cheguei à rodoviária do Rio no meio da tarde. Marcos Batista havia desembarcado uma hora antes, tempo suficiente para se irritar com a capital carioca. Ele estava com um chapelão e um olhar que não piscava. “Eu queria chegar na Cynthia sem passar pelo rio :(“, escreveu Bats em um grupo de WhatsApp no dia anterior.

O turista no Rio de Janeiro é recebido por um golpista oferecendo um táxi de procedência duvidosa e preço exorbitante. Por mais reformas e modernizações realizadas no terminal, o sentimento de caos está impregnado na essência do lugar.

Arrastamos nossos corpos e bagagem para um lugar afastado. Encontramos um hotel nas proximidades, de onde chamamos um Uber. Antes uma condução vinda de uma negociata automatizada mediada por uma empresa da Califórnia do que ser mais uma vítima da malandragem carioca.

Chovia. O Uber demorou a chegar. Abençoada seja a marquise do hotel Intercity Porto Maravilha. Falamos de Resident Evil 4, João Silvério Trevisan, tantas outras coisas. Somos bons de papo.

Fomos à casa do casal Tiago “Elcerdo” Lacerda e Beatriz Shiro, na Tijuca. Ambos são quadrinistas. Elcerdo, com que tenho mais contato, faz algumas ilustrações em pixel art, o estilo típico dos games dos anos 1980 e 1990. É da editora Beleléu, que surgiu como revista e também participa do circuito de publicações independentes. É também dono de um vozeirão grave oposto ao que seu corpo magro indica. Conheci os filhos do casal que já me eram familiares pelos cartuns que Tiago volta e meia posta retratando seu dia a dia, Tintin e Olga, então com 3 e 1 anos.

Ilustração de Cynthia Bonacossa

A casa tinha brinquedos espalhados por todos os cantos, vestígios de vida e diversão. Um pátio coberto nos fundos, planos de Elcerdo para oferecer cursos no futuro, um bar na esquina.

Lá também estavam Cynthia Bonacossa, cerveja e maconha. A fome / larica começava a pedia atenção no anoitecer. Pedimos por delivery esfihas de um restaurante a poucas quadras da casa.

Um dos assuntos debatidos foi Allan Sieber. A misantropia, o isolamento e o comportamento do quadrinista inspiravam opiniões apaixonadas. O fato dele ter se comportado de uma maneira rebelde em um evento era divisivo.

Muitos quadrinistas, como Elcerdo e Cynthia, fizeram parte do estúdio dele, a Toscographics. Batista escreveu um roteiro de novela gráfica com um dos personagens dele, o Gay Boy. Influenciou uma pá de gente que gosto, como a Sirlanney. Não participei da conversa, nunca tive contato direto com Sieber, embora me identifique com ele a partir do que ouço e consiga identificar sua personalidade em seu quadrinho. Lia suas tiras na Folha de S.Paulo e gosto muito de Ninguém me convidou, livro de Sieber com Jouralbo, seu pai.

Chapados, jogamos Mario Kart 8 Deluxe no meu Switch, pessoal reunido ao redor da tela de quatro polegadas. A traseira do videogame tem um pezinho providencial para esse tipo de situação. Quando o console foi anunciado, muitos torceram o nariz para uma propaganda com uma jovem de cabelo bem aparado levando o videogame para uma festa na cobertura de um prédio. Virou meme, a internet a batizou de Karen, dúvidas e piadas sobre a dificuldade da personagem de socializar. A situação que vivíamos no Rio era, em essência, próxima à propagandeada. Éramos várias karens bêbadas.

MK8 é o mais vendido do console. Consiste em uma corrida maluca cartunesca estrelada pelos personagens famosos da Nintendo, com os competidores arremessando cascos uns nos outros. Oferece facilidades para pessoas sem muita habilidade nos controles, como era o casa de Timtim, criança que ao jogar ficava hipnotizada. O carisma do mundo de Mario precisa ser estudado.

Tenho acumuladas mais de 50 horas nesse jogo, é o meu título preferencial para situações como essa, sociais, de galera. Ganhei todas as corridas. “Viciado”, acusou-me Elcerdo, uma reação comum de derrotados nos jogos eletrônicos. A noção de vício e videogame são próximas, ouço essa relação desde a infância. Chegava a ficar ofendido.

Vício ilustra como o videogame de maneira geral é maldito. Pense em outra tarefa que, ao ser bem desempenhada, pode render uma acusação de vício. No capitalismo, atividade lúdica é amaldiçoada, tempo desperdiçado.

Crianças ainda contam com um pouco mais de tolerância. O personagem da Nintendo tem um efeito mágico nos pequenos que a ciência ainda não consegue explicar. Tim-Tim ficou hipnotizado. Graças a algumas ferramentas de inclusão do jogo que automatizam certos processos, conseguiu até completar algumas corridas. Jogou no colo do pai de corpo magro e voz grossa.

Chuva. Fome. Horas se passaram, as esfihas não chegaram. Elcerdo, com vozeirão gutural, reclamava “como isso é possível, a esfiha fica aqui do lado”.

“Isso é possível, você está no Rio”, cantou Batista, com voz estridente, como se alguém tivesse dado play em uma vinheta de rádio, ao melhor estilo musiquinhas do nada, O Último Programa do Mundo. Batista começava a ficar à vontade.

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Este texto é um trecho de um ensaio maior que estou a escrever. Foi recentemente publicado na revista A Zica #6 com ilustrações de Cynthia Bonacossa

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