Guaíba x Guaíba: sobre perdas e esperança

João Varella
5 min readMay 9, 2024
Entrada do prédio do meu avô

A relação de Guaíba (cidade) com Guaíba (rio ou estuário ou lago ou lagoa… uma massa de água polimorfa) é de mágoa. No passado, dizem os mais antigos, era um belo balneário. Minha geração não teve nada disso, só água insalubre que separava o interior da capital, a periferia do centro.

A relação Guaíba x Guaíba foi agravada. O Guaíba avançou por Guaíba, o bairro em que cresci virou água e barro. Um terço da cidade ficou submersa. Entre as pessoas que perderam tudo, minha mãe.

“Graças a Deus, foi só perda material”, manda a etiqueta. Sei que a intenção da frase é de cortesia, não se trata de desdém com o sofrimento alheio. Mas veja o caso da minha mãe, que estava em Curitiba no momento da cheia. Ela tinha murais com fotos minhas, do meu irmão, dos meus sobrinhos, de amigos. Recortes de jornal local, gato, artesanatos que ela fazia. Ficou apenas com a mala de mão que levou na viagem. Sim, perda material, mas só?

Perto da casa dela vive meu avô, de mais de 90 anos, que precisa de acompanhamento de uma cuidadora, em um apartamento de primeiro andar. A enchente não entrou na residência, mas ele ficou ilhado, recebendo comida e remédios por bote, sem energia elétrica, sem internet, pouca água. Stress crescente.

Casa do bairro Engenho, em Guaíba/RS

Era difícil acompanhar de longe, gerava muita agonia. Fui abençoado (o vocábulo é esse mesmo) na infância com amigos-irmãos que jogavam RPG e que liam quadrinhos na antiga casa desse mesmo idoso ilhado. Mantemos contato por WhatsApp, expliquei a situação com eles. Leonardo Rostirolla coordenou uma entrega de mantimentos a barco, tudo de acordo com a dieta do meu avô.

A situação no prédio dele era insustentável. Só restava uma família além do meu avô, era hora de sair.

Na segunda meu irmão veio para São Paulo para um compromisso de trabalho. Começamos a esboçar um plano para acessar Guaíba. Desmarquei um compromisso importante de trabalho: a participação no Mandrake Fest, em Goiânia.

Chegando em Curitiba, montamos uma espécie de sala de emergência para manter todos alinhados: família, vô, amigos de Guaíba. Dilico (cujo RG denuncia Odilon Nunes) atendeu o chamado. Ele tá lá ainda? Onde? Tem certeza que ainda não foi resgatado? Ouvi que já não tem mais ninguém lá… Certo, estou indo. Mandei fotos da edificação com ênfase especial em um portão ao redor do prédio e na escada por onde meu velho poderia sair. A água estava a dois metros de altura. Começou a chover.

Moacyr, já em terra firme

E silêncio. Conheço a fera, sei que ele estava focado no resgate, deixou o celular no seco e se embrenhou. Repassou as coordenadas a outros companheiros solidários. E eu, de longe, esperando, vidrado numa tela estática, a postos para triangular qualquer necessidade. A cuidadora tinha pouca bateria no celular.

Ele e outras pessoas — incluindo um anônimo de jet-ski — conseguiram conduzir meu avô à terra firme. “O seu Moacyr foi BEM VALENTE. Situação estava tensa, tinha que tirar ele de lá pra ontem”, escreveu Dilico. “As casas com água na janela+. Doidera… Cenário apocalíptico”.

Sprinter depois de uma das primeiras coletas de donativos

Enquanto isso, familiares de Curitiba coordenavam uma arrecadação de donativos. Encheram uma sprinter num estalar de dedos, muitos amigos se juntaram à corrente. De água até roupa, tinha de tudo do básico.

Estávamos, meu irmão e eu, dispostos a fazer a entrega, sairíamos nessa noite ou no dia seguinte. Os grupos de zap de guaibenses aconselhavam não vir. Arnold Weinert, amigo que trabalha de Uber, ficou preso do outro lado da ponte e não conseguia de jeito nenhum voltar. Se fôssemos descer, precisávamos tomar cuidado para não nos somarmos ao contingente de pessoas precisando de ajuda.

A cidade de Eldorado do Sul, que virou o epicentro da crise, está no caminho a Guaíba. Intransitável, assim como várias outras estradas do RS.

Projeção de chuva de mais de 330 mm de chuva na região até segunda-feira e onda de frio. Autoridades pedindo para não voltar às zonas de risco. Crise de segurança pública com rixas entre facções rivais em Guaíba, a cidade. O plano que tínhamos traçado começou a deixar de fazer sentido.

Gráfico da Folha de S.Paulo

Agradeço o apoio que tanta gente deu depois de eu postar o vídeo na terça-feira. Fiquei frustrado, desanimado. Mas não era hora. Vou continuar ajudando de outra maneira. Os donativos arrecadados em Curitiba serão dados a uma carreta com condições de chegar até onde deve chegar; a Banca Tatuí retirou a comissão de venda de editoras independentes do RS. Há campanhas de gente muito séria espalhadas por todo o Brasil. De longe, nos somamos ao Rio Grande do Sul.

Bairro mais populoso de Guaíba (Bárbara Cezimbra / Agencia RBS)

PS: Cancelei o cancelamento da Mandrake. Estou a caminho de Goiânia/GO. Perdi a passagem de avião, estou indo de ônibus. Obrigado Faina pela compreensão nas idas e vindas; obrigado equipe da Lote 42 pela ajuda logística nesses desvios de feira.

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