Feiras de Arte Impressa no Brasil

João Varella
22 min readAug 30, 2022

Cecilia Arbolave e eu demos uma entrevista para a dissertação “As Feiras de Arte Impressa no Brasil” de Mélodi Dall’Agnese Perin Franquine Ferrari. Segue

A Feira Miolo(s) acontece na Biblioteca Mário de Andrade desde 2014

Mélodi — Gostaria que vocês falassem um pouco sobre esse início, quais as motivações e referências que tiveram para criar, em 2012, a Lote 42, editora voltada para a publicação de artistas e posteriormente da Banca Tatuí e da Feira Miolo(s).

João — O começo da editora veio de uma inquietação minha e do Thiago Blumenthal, porque a gente sentia que muita coisa no meio editorial brasileiro poderia ser feita de uma maneira diferente. A referência maior em termos editoriais vinha dele, ele tinha experiência com outras editoras e tudo mais eu tinha um histórico mais vinculado com o jornalismo tradicional. Na época, no fim de 2012, eu estava trabalhando como repórter de tecnologia de uma revista de negócios. Eu acho que foi dessa mistura do Thiago com suas vivências mais tradicionais no mercado editorial mesmo, ele era freelance de editoras grandes e chegou a trabalhar dentro da Publifolha e minha que não sabia nada disso e resolvi que já tinha uma história mais vinculada à ideia de tecnologia e tudo mais, surgiu dessa mistura eu acho.

Cecilia — Isso da editora, você também quer saber da Banca?

A Banca Tatuí surgiu em 2014 no momento em que as feiras estavam florescendo bastante. A Lote 42 surgiu no final de 2012, mas o primeiro livro saiu duas semanas depois da Feira Plana. Olhando em perspectiva tinha um zeitgeist, uma cena se formando às vezes sem todo mundo ter consciência disso. Olha dá para perceber, eu lembro que a gente não participou desta Feira Plana porque não sabia e nem tínhamos visto as inscrições, mas uma amiga nossa editora estava lá e colou no vidro: “lançamento da publicação ‘Já Matei Por Menos’ daqui a duas semanas”. De 2013 para 2014 foram surgindo várias feiras, já acontecia a Plana, a Tijuana e a Ugra Press. A Parada Gráfica teve a primeira edição no final de 2013 e a gente vinha sentindo o interesse e a procura das pessoas por esse tipo de publicação. Ao mesmo tempo nós como editora a gente também percebia que seria legal ter um espaço fixo e físico para que as pessoas pudessem olhar as publicações entre uma feira e outra. Eu percebi que nas feiras tinha cada vez mais um interesse do público, mas acabaram as feiras e muitas editoras nem tinham site ou loja virtual. Daí apareceu uma banca na rua onde a gente mora, aqui na Barão de Tatuí, para venda, com isso se juntou o sonho de infância do João de querer ser dono de banca, você pode contar se quiser, mas enfim… Apareceu uma banca a venda, a gente comprou a banca e começamos a transformar esse espaço no lugar de encontro, no lugar de publicações.

Mélodi — No começo vocês não pensavam em fazer, por exemplo, mais edições por ano?

Cecilia — Só uma coisa que eu queria comentar da banca. Quando a gente criou a gente poderia ter chamado de Lote 42, mas a gente sabia que não era só nós dois que tínhamos essa necessidade de um espaço de visibilidade, então a gente chamou de Banca Tatuí pensando em ser esse espaço mais diversificado e aberto a mais projetos.

João — A Miolo(s) surge em uma viagem para Buenos Aires, na feira do livro de Buenos Aires. Quando São Paulo foi homenageada nós participamos do eventos produzindo algumas mesas e participando de algumas mesas, foi nesse momento que tivemos contato com o pessoal da Biblioteca Mário de Andrade, que era responsável pelo estande da cidade de São Paulo. Nessa conversa falamos para que a Biblioteca Mário de Andrade acompanhasse essa movimentação de editoras independentes e assim surgiu a Feira Miolo(s). Eu acho que por a gente ter essas outras frentes de trabalho a ideia de um evento anual parecia fazer mais sentido e também se inseriu de uma maneira mais natural no calendário da biblioteca e no calendário de feiras. Porque se fosse considerar na época tinha a Plana que acontecia em março e a Tijuana que já estava na casa do Povo em agosto e também se for considerar Parada Gráfica, Parque Gráfico… Eu acho que em termos de São Paulo tinha essa perspectiva de duas outras feiras grandes, até tem outras feiras menores: Zine Die, Mercado Supernova, Ugra Fest que é pioneira, mas a gente sentia que para esse viés de arte gráfica a Plana, a Tijuana e a Miolo(s) faziam um bom tom, cada uma ocupando um espaço no calendário.

Acho que foi isso que fez ela ficar anual e fora que nos dá tempo de fazer um produção relativamente tranquila, porque se for considerar que se fosse duas vezes por ano ia ser o dobro de Miolo(s)…

Cecilia — Sim, porque a feira não é só a parte da feira, das mesas e tal. Tem uma programação que a gente pensa e tudo isso leva tempo. Acho que não daria para fazer uma Miolo(s) mensal no formato que ela é. Se fosse só a venda de publicações talvez daria, mas a feira tem também toda uma programação em volta.

Mélodi — E como é que vocês fazem essa curadoria, a seleção? Por exemplo, aqui também entra a questão da nomenclatura, ela é uma feira de artes gráficas, uma feira de arte impressa ou uma feira de publicação de artista? Quando eu comecei a estudar feiras eu vi que tinha muitos nomes diferentes, mas elas acabavam sendo muito parecidas em si em termos de expositores, algumas com viés mais para a fotografia ou mais para os quadrinhos. Contudo, esses editores e artistas que frequentavam acabavam frequentando várias delas.

Cecilia — No nosso caso, tanto na Editora, quanto na Banca e na Feira, a gente não é muito apegado à nomenclatura. Tem livros nossos que as livrarias têm dificuldade de saber se coloca na não ficção ou ficção, por exemplo, então a gente não se preocupa muito. Agora, uma palavra que aparecia na divulgação era “festa da arte gráfica” na Biblioteca Mário de Andrade. Mas uma característica da Miolo(s) em comparação com outras é, pela nossa percepção e também de comentários que a gente foi recebendo na feira, é que é uma feira que acaba abraçando as diferentes expressões dentro da publicação independente. Então, por exemplo, você começou a falar de publicações como livros de artista e sobre o mercado de arte visuais, a gente se identifica com isso e também tem um pé muito forte na literatura, nos quadrinhos. Assim, eu não defino essas publicações como livros de artista apenas, são publicações independentes e dentro tem poesia, quadrinhos, fotografia e também as artes gráficas. Tem também aqueles expositores que estão muito mais da gravura, do cartaz. Então eu acho que a Miolo(s) sempre foi muito diversa nessa seleção pensando também que estamos numa biblioteca. É uma feira que abraça essas diferentes expressões impressas.

Em relação a seleção a gente sempre faz uma convocatória aberta. A participação na feira é gratuita, sempre foi. O que a gente pede em troca, não é obrigatório, mas a gente convida os editores a doarem uma ou mais publicações para o acervo da Biblioteca Mário de Andrade. Fazemos um formulário e uma seleção e vamos compondo, tentando contemplar estas diversas expressões. Então tem um pouco de tudo isso que eu mencionei.

Mélodi — Essa era uma das minhas próximas perguntas, a constituição do acervo. É muito interessante que desde o começo houvesse essa preocupação. Eu estou participando de um grupo de pesquisa com o Amir Brito Cadôr, ele é responsável pelo acervo de publicações de artistas da UFMG e toda organização deles também é em formato de biblioteca. Pela minha pesquisa, só existam esses dois acervos dedicados ao tema, o dele e o da Biblioteca Mário de Andrade. Então queria que comentassem sobre isso, sobre a participação dos artistas e doação e se vocês sabem quantos exemplares tem nesse acervo?

Cecilia — Não são todos que doam, mas a maioria sim. Não é uma obrigação, é uma sugestão. Começou desde a primeira edição, a gente falou com a biblioteca que estava acontecendo uma cena, estava acontecendo uma produção contemporânea diferente e a gente falou desde o começo que os editores doassem uma publicação. Essas publicações estão muito seguras, guardadas no melhor lugar em que elas poderiam estar, pensando na posteridade.

João — Era na verdade uma coisa que interessava tanto aos publicadores, quanto para a biblioteca. Para a biblioteca é interessante ter um acervo vinculado a esse essa movimentação, então foi isso aí, foi achar a fome com a vontade de comer.

Cecília — Em 2019, por exemplo, a gente fez uma mostra de parte do acervo, uma parte muito pequena. Foi curioso ver nessa seleção que tinha editora que já não existia mais, livro que estava esgotado… Então é interessante de saber que ali na Biblioteca Mário de Andrade tem um acervo que se alguém quiser saber o que foi publicado em 2016 vai poder consultar. Claro, como esse acervo é aberto, a doação é aberta, não existe ali uma limitação, outros editores vão doando e se forma esse acervo. A partir de 2018 tinha uma pessoa da biblioteca que durante a feira ficava passando nas mesas e conhecendo trocando uma ideia, sugerindo o que seria legal de doação (era o Ricardo Melo, mas ele não está mais trabalhando lá). Mas diferente do Acervo do Amir Cadôr (UFMG) que ele vai compondo através da compra de publicações e imagino que também receba doações, acervo daqui é fruto da feira Miolo(s), todas as editoras doam e a biblioteca depois redireciona para as coleções. Tem coisas que vão para a coleção geral, outras que vão para a sessão de artes, mas nos foi explicado que tudo tem uma tag chamada Miolo(s), então dá para achar o acervo completo.

Mélodi — E sobre o número de expositores? Vocês conseguem perceber que a feira foi crescendo em número de artistas expositores? Como vocês se organizam internamente, o número da equipe aumentou? Como eram as primeiras edições e como é isso agora?

Cecilia — Foi aumentando sim, tenho os números depois se quiser eu posso te passar. Na primeira foram em torno de cinquenta e poucas e depois foi aumentando. Antes da pandemia chegamos a 180 expositores, considerando que mais ou menos uns 40 e tantos expositores se revezaram entre sábado e domingo. Na edição da pandemia de 2020 a gente reduziu para 100 pensando na experiência do público virtual e também na produção, porque uma coisa é organizar uma feira que o pessoal chega encontra sua mesa e a feira acontece, mas virtualmente a gente percebeu que não sabíamos como iria ser essa demanda de produção e esse número já foi bastante para administrar. Na de 2021 a gente cresceu para 125 expositores.

Em termos de equipe, somos nós dois e não lembro a partir de que ano, mas em 2017 a gente já chamou algumas pessoas para ajudar na produção e em 2018 ou 2019 a produtora Natália Costa chegou. Ela ajuda muito nesse contato com os expositores e na produção mesmo. Mas não cresceu muito mais do que isso. Na edição virtual a gente percebeu que iríamos precisar de um apoio na comunicação, isso é uma coisa que a gente sempre assumiu, mas chamamos o Alessandro Andreola tanto na edição de 2020, quanto na de 2021. Não é muito mais do que isso aí, a gente conta com a equipe da biblioteca que tem uma equipe técnica que também não é muito grande.

Mélodi — Como funciona o financiamento da Feira? Vocês têm patrocinadores ou lei de incentivo?

Cecilia — Não tem patrocinador, é uma feira feita junto com a Biblioteca Mário de Andrade, então é um contrato que se faz junto com a Secretaria de Cultura e tem uma verba para feira que ajuda principalmente a custear a programação.

Mélodi — Vocês já fizeram algum tipo de pesquisa para medir o volume de venda desses expositores?

Cecilia — Nas avaliações a gente colocou, mas como ela não é obrigatória, somente 20% dos expositores respondem.

João — E um percentual menor ainda preenche a questão do valor de vendas.

Cecilia — Eu sei que nas edições pandêmicas virtuais as vendas caíram bastante quando comparado com uma presencial.

João — A metodologia é tão fraca que qualquer número que se tire de lá é inconclusivo. Até nem é bom te falar nada porque ele só vai mais atrapalhar do que ajudar. Mas não a gente nunca teve essa questão de preenchimento total de faturamento, venda de quantidade de exemplares. Seria interessante, mas como é um é um tema delicado acho que a gente nunca levou adiante.

Mélodi — Super entendo, mas fico pensando na questão de conseguir patrocinador, talvez para as pessoas entenderem o valor monetário que está agregado a esses eventos. Porque é um grande problema da cultura isso, normalmente a gente não consegue quantificar, mas enfim era uma curiosidade que eu tinha e a maioria dos produtores que eu pergunto também não sabem informar.

E sobre pesquisa de perfil do público? Quem frequenta as feiras? Vocês já fizeram algo do tipo?

Cecilia — Também não fizemos pesquisa.

João — Precisamos de pesquisadores, Mel!

Cecilia — Agora eu não vou lembrar quem, já tivemos pesquisas, mas vendo a metodologia não dá para considerar. Não teve nenhuma pesquisa na Miolo(s) que a gente olhasse e falasse: “isso aqui é legal, é uma pesquisa in loco”. Tiveram algumas pessoas que informaram que iriam fazer umas perguntas mas eram fracas ou abertas demais, assim não me parece que seja uma pesquisa para citar em trabalho acadêmico como o seu. Se você quiser eu posso te passar, na Argentina tem uma feira chamada Feria de Editoras que é uma feira de editoras independentes com pé muito mais forte na literatura. São editoras independentes, mas mais estruturadas tipo Dublinense, sabe? Editoras que estão publicando autores novos e também alguns de fora e tal. Enfim, é uma feira bem grande e de relevância para a cena cultural, ali teve um pesquisador do Instituto de Pesquisa de renome, o CONICET, que fez uma pesquisa de fôlego, com rigor técnico e com várias pessoas perguntando para o público. Se quiser eu posso recuperar contato eu te passo, mas na Miolo(s) as únicas coisas que eu vi foram iniciativas pequenas e que não dá para dizer que isso foi uma pesquisa de público.

Mélodi — Isso é um desafio em todas instituições museológicas e culturais, entender por que o público vai até lá e qual o interesse, para poder conseguir divulgar melhor os eventos, fazer mais pessoas acessarem. Eu tenho vontade de fazer uma pesquisa de públicos, mas sabia que era coisa demais para uma dissertação. Como exige um grau de complexidade maior talvez para um projeto de doutorado eu possa pensar melhor.

Cecilia — Depois eu te passo o contato do pesquisador argentino, porque ele tem metodologia, já fez mais de uma edição dessa pesquisa. Eu acho que pode ser interessante. Quem fez pesquisa na feira foi o Nathanael Araújo que acho que você conhece, mas era uma pesquisa mais antropológica e ele ainda não publicou, não está pronto.

João — E tem o pessoal do CEFET-MG que fez pesquisas com feiras, a Samara Coutinho fez uma pesquisa sobre a gente.

Cecilia — O CEFET, é o Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

João — É interessante que o CEFET colocou editoração entre seus cursos de tecnologia. Então é um ponto de vista bem diferente.

Mélodi — Sim, eu li uma dissertação de lá, mas a abordagem era bem diferente, assim como a do Nathanael também é.

João — Sim, também tem uma tese muito citada, a do José de Souza Muniz Júnior.

Cecilia — Ele pega a primeira onda de feira. Tanto que eu li e lembro que citava o Brasil in Fest. Era outro momento.

João — Mas eu te passo depois, estou vendo aqui e eu tenho uns sete trabalhos acadêmicos guardados que abordam o tema, não necessariamente feiras.

Mélodi — Eu agradeço porque como falei, tem muito pouca coisa escrita sobre, é um mercado que nasceu há 10 anos, recente.

Cecilia — Eu lembrei que na Tijuana de 2015 houve um encontro de publicadores na véspera que gerou uma publicação.

Mélodi — Sim, da Fernanda Grigolin. Eu conversei com ela e dedico um capítulo da minha dissertação para analisar os dados, pois é a única pesquisa de perfil de expositores de feiras de arte impressa que existe até hoje na América Latina.

Falando das feiras de arte impressa para além do evento físico e pensando na rede que a gente estabelece. Eu acho que cada feira é um momento de encontro, gostaria que vocês falassem um pouco sobre os cursos e workshops que acontecem.

João — Ou seja, as atividades paralelas que vão além da exposição e venda. Mesmo exposição e venda não é só exposição e venda, ela marca até essas questões que você pontuou no começo da conversa: de relacionamentos, de incentivo, de descobertas, de aprendizado. Eu acho que essas atividades, que a gente faz na Miolo(s) e em outras feiras: oficinas, exposições, palestras, conversas, visam potencializar esse outro lado que acontece nas feiras na tanto da formação de público leitor, como também de público publicador. E essa barreira de leitor-publicador cada vez faz menos sentido, pois nessa classificação o publicador tende a ser leitor. Com as facilidades de impressão há disseminação de técnicas artesanais que fazem com que qualquer leitor se anime, tenha a vontade e vire também publicador. Então a gente enxerga como forma de potencializar essa função secundária (para usar o termo da sociologia), mas ela não é tão secundária, não é o casual, não é acidente de percurso, a gente já entende que é isso acontece e enfatiza com essa programação paralela.

Mélodi — Vocês acham que serve tanto para a formação de público como para legitimação destes artistas. Eu entendo que esses artistas publicadores vão ter a primeira chance de expor seu trabalho e ter contato com o público nesses eventos. Até porque muitos vão trabalhar com o tipo de livro que não vai estar numa exposição de arte ou em outro lugar ou outro tipo de galeria, então eu vejo a feira também como este momento de exposição, falando desse termo das artes visuais, que é expor a obra, um novo modo de expor e que faz a obra circular realmente.

João — É um jeito de expor que influencia a própria criação da obra. Muita gente cria publicações e cria peças pensando que ela vai circular desse jeito. Isso é visível, talvez o exemplo mais claro disso seja o abandono que acontece nas publicações dos chamados “paratexto” como tem no livro tradicional, assim eles visam dar uma espécie de autonomia a obra. Pode ser que o livreiro não entenda nada daquele livro, mas os textos de quarta capa, orelha e outros paratextos ajudam qualquer leitor a entender do que se trata aquela obra, porque que ela deve ser adquirida, quais são seus principais argumentos, o que é esse livro, já que o livro se não tem esses aparatos é difícil de se entender de imediato sem ler pelo menos um bom um bom trecho do livro que leva alguns minutos. Já nessas feiras que tem os publicadores e editores presentes, essas obras podem prescindir desses elementos, aliás são elementos do ponto de vista estrito, comerciais, tem isso e isso é entendível, é compreensível, não há um uma ruptura do pacto de leitura ali mas graças a esse arranjo de feiras a parte de conteúdo pode chegar até a esses locais tradicionalmente ocupada por paratextos, entre outras coisas. Esse é o exemplo que eu mais uso em aula, o mais evidente para se discutir essa essa mudança até na forma de se conceber as publicações.

Cecilia — Aí de novo, a diferença entre uma obra livro de artista que talvez nem vai considerar esse tipo de paratexto e as obras que tem o pé mais na literatura nos quadrinhos. Porque o livro de artista já usa o suporte livro como parte da obra, geralmente não tem esses elementos comerciais. A não ser que queira brincar com essas coisas como você também deve ter um livro de artes aqui que subverte esses elementos. Mas enfim acho que o que você disse também se refere muito esse tipo de publicação que a gente vê em feiras que também poderíamos ver numa livraria mas que na feira já tem outra apresentação.

Mélodi — A próxima pergunta, já se encaminhando para o final. Eu estava escutando o podcast de vocês, o Papo Tatuí, e tem um episódio com o Paulo Verano que ele fala sobre um modelo que já estava saturando antes da pandemia, que era uma proliferação muito grande de feiras. Queria saber qual a percepção de vocês sobre o assunto.

João — Eu te confesso que nem lembro dos argumentos do Paulo, você consegue refrescar nossa memória?

Mélodi — Ele não comenta nem positivo e nem negativo, ele fala de algo que estava acontecendo. Desde que começou a primeira Tijuana, em 2009, até antes da pandemia 2019, existiam cada vez mais feiras, era um sintoma do mercado. Eu fiz um mapeamento das feiras no Brasil até começo de 2020, agora eu vou retomar porque outras feiras foram criadas em 2022. Realmente é interessante perceber que esse número de feiras vai crescendo exponencialmente, ano a ano, em várias regiões, não somente em São Paulo, mas também cidades como Florianópolis, Porto Alegre, Belo Horizonte, que tem esse cenário mais fortes. Essa é um pouco da minha teoria, quanto mais feira mais feira, mais artista circula e mais artista quer expor.

João — Eu não sei o que eu falei no podcast. Talvez eu esteja me traindo aí, mas também só louco fica defendendo uma única posição para o resto da vida, mas eu acho que a feira, assim como existem feiras de fruta que tem toda semana, não satura. Assim como tem quantidade de livrarias e sempre parecem insuficientes, ainda mais no Brasil, eu não vejo que as feiras possam saturar. Acho que elas de maneira natural se diferenciam e talvez seja o momento dessas publicações circularem desse jeito. Existem livrarias e feiras, talvez na feira tenha essa questão um pouco mais performática, temporária, tem todas as suas diferenças comparados com livraria ou com galeria, mas é o jeito. Eu não sei se a saturação é uma questão.

Cecilia — O que eu fico pensando é que talvez esse pensamento de saturação está relacionado com essa coisa do Hype. Porque quando surgiram as feiras era uma novidade, até na imprensa. Era uma novidade tanto para o público, quanto para as editoras. Daí chegou o momento em que parou de ser novidade, mas se a gente enxerga a feira como um hype, acho que está errado. Aqui, por favor, não estou me referindo ao Paulo, estou só refletindo sobre essa questão. Eu acho que é normal que tenham surgido tantas feiras porque acontecia muito de você ver uma pessoa que é público numa feira e no ano seguinte ser expositora. Essa pessoa foi super inspirada pelo que viu na feira e fala: “eu também quero fazer, eu quero estar ali” e vira publicador. Mesma coisa com as feiras, eu lembro uma vez na parada gráfica, a Camila Petersen que organiza a Parque Gráfico em Florianópolis, ela estava fazendo uma pesquisa e entregando um flyer da Parque Gráfico que iria acontecer no ano seguinte, uma coisa assim. Então é normal que frequentadores de feiras também façam suas próprias feiras, eu acho que tudo isso multiplica e fortalece. A questão do público de repente parar de ir porque tem todo final de semana é uma coisa que a gente tem que pensar e refletir em como fazer essas feiras continuarem atraentes e necessárias. Como você falou na feira de frutas, as pessoas sempre vão.

João — Não tem hype na feira de frutas. As frutas são as mesmas todos os anos.

Cecilia — Então como fazer para que a feira seja um lugar que as pessoas gostem de frequentar e que seja parte do roteiro.

João — O hype é o veneno da indústria cultural. Ela te ofusca, você busca incessantemente, investe às vezes muitos recursos financeiros, tempo, trabalho em busca de estar no hype. Mas depois que o holofote apaga muita gente se perde, não sabe o que fazer sem essa chama. Eu sinto que uma certa naturalidade é até boa, um certo arrefecimento dos ânimos eu não vejo como algo negativo, sou muito mais dessa naturalidade eu acho que é muito mais legal. Porque não adianta, a nossa atenção enquanto seres humanos é seletiva. Muita gente reclama: “mas onde é que eu vou saber dos livros que são publicados?” Mas ele não se mexe, fica nas redes sociais. O Twitter tem 30 trend topics por momento e desses, 15 vão estar ocupados pela Marvel, 10 pelo Star Wars e cinco pelo Real Madrid e aí se você não entra, já é uma frustração. Então, eu não vejo a busca pelo hype uma solução, tudo bem ela pode até trazer uma solução temporária, mas se manter nesse touro mecânico é difícil, esse rodeio você precisa de muita força para se manter lá em cima.

Cecilia — Só para complementar, no nosso caso eu acho que a gente esteve nesses holofotes em alguns momentos com a Banca Tatuí e até com a feira, mas não é isso que nos motiva. O que nos motiva é outra coisa e por isso que a gente continua. Atravessamos a pandemia, fizemos a Miolo(s) virtual com todas as dificuldades desses formatos digitais, mas a gente se mantém porque tem outras coisas que nos move, não é o hype, não é o novidade, essa é a ideia.

Mélodi — Acho que o sonho de todo artista é que as pessoas consumam arte como elas consomem fruta, sempre teríamos público.

João — Mas acho que é isso que temos que buscar. Até as publicações, mesmo livros, a publicação impressa no formato mais tradicional, ele tem uma vocação diferente do momentâneo, do agora, o livro tem vocação para a eternidade. O livro está muito mais vinculado com a eternidade do que com o momento, ele aspira isso. Então eu não sei, eu acho que a roda do hype serve para algumas linguagens. Por exemplo, eu trabalho também com videogame que vive basicamente hype em cima de hype e eu vejo o lado danoso disso, tanto do ponto de vista dos desenvolvedores, quanto de público, de memória. O videogame é uma linguagem sem memória. Acho que os publicadores podem olhar para o lado e para essas outras linguagens, outras mídias e aprender com seus erros e acertos. Aprender e adaptar o que interessar, toma para si, e o que não interessar descarta, usa como anti exemplo.

Mélodi — Última pergunta. Gostaria que vocês falassem da experiência online da Feira Miolo(s) e também o que pensam para o futuro.

Cecilia — Em 2020, a gente fez uma edição virtual da Miolo(s). Aquele momento em que não sabíamos o que ia acontecer, a gente começou a produzir lá por junho e já estávamos com a pandemia avançada e não sabíamos como o mundo iria estar em dezembro.

A gente pensava que o pessoal iria estar esgotado do virtual, mas tínhamos que fazer. Então o formato que a gente criou foi dividir esses 100 editores em diferentes faixas de horários, em grupos, a cada duas horas entrava um novo grupo e ficava montando como se fosse sua mesinha. E aí a pessoa chegava e interagia com o público, tudo no Instagram. Nós desestimulamos essa ideia de ter conversas, lives, conversas com autores que fossem como se você chegasse na mesinha da pessoa. Houve de tudo e isso foi legal, mas não tanto de a pessoa chegar e assistir uma conversa. Teve mais da pessoa chegar e conhecer os livros e editores. Também tivemos uma programação de falas e o ponto que é legal de destacar foi que aumentamos a participação de vários estados na feira, o virtual trouxe essa possibilidade. Tem um vídeo no perfil do Instagram da Miolo(s) que acho que é bem legal, é um resumo do que rolou nesta edição de 2020. São os próprios editores mostrando e tudo que ficou gravado é bem emocionante. Em termos de vendas realmente não foi tão significativa como eram as edições presenciais, mas em termos simbólicos de ter feira e dos editores se encontrarem e mostrarem o trabalho, acho que foi muito importante. As doações aconteceram depois pelos Correios.

Em 2021, a gente começou o ano em março com uma notícia que partiu o coração que foi a morte do Flávio Oliveiras de Salvador, ele era publicador, impressor, organizador de feiras, enfim era um artista gigante e que a gente perdeu para a Covid-19 em um momento que ainda não tinha vacina para todo mundo. E a gente pensou em fazer uma homenagem a ele. A Miolo(s) desde 2015, desde a 2ª edição, fazia homenagens para artistas (em 2020 a gente não fez porque não fez mostra virtual) e em 2021 a gente decidiu retomar a homenagem com o Flávio e foi muito simbólico porque era um artista que estaria do nosso lado. Foi uma perda muito triste e também a gente percebeu como realmente quem perde somos todos nós. Porque ele era uma pessoa muito ativa na cena cultural, não somente de Salvador, mas também no Brasil. Essa homenagem se deu na forma de uma mostra presencial na biblioteca, foi uma das primeiras ações presenciais da própria biblioteca na volta (do Covid-19) não a única, já tinha tido uma mostra antes, mas enfim a biblioteca também estava voltando e a feira continuou sendo virtual, a diferença foi que ao invés de 2 horas foi só uma hora de live, isso respondendo a pedidos dos expositores da edição anterior e também uma diferença muito legal foi que a gente abriu uma convocatória para programação. Então na semana prévia da Miolo(s), que a gente sempre chamava de Esquenta Miolo(s), a gente abriu para que todo mundo sugerisse programação nos próprios perfis. Está no site da Miolo(s) ainda, foram mais de 50 atividades durante uma semana. Foi uma coisa enorme e isso só mostrava também a vontade dos editores e dos publicadores de também trazer à tona conversas, lançamentos e temáticas. Outra coisa que a gente fez foi o Giro Miolo(s) que foi também uma uma ideia de apresentar as novidades das editoras, então pedimos para todo mundo mandar um vídeo de até três minutos com seus lançamentos, abertura de espaços, impressões, o que eles quisessem. Nós editamos esses vídeos e fizemos uma apresentação na biblioteca, gravamos da biblioteca mas foi virtual, a gente infelizmente não estava vendo os comentários, mas depois eu só de espiar os comentários ao vivo no YouTube foi muito assistido e também foi foi uma um jeito legal de apresentar o que rolou nesse nesse ano de arte impressa. Isso também ficou no YouTube da Miolo(s) e tem também um mini documentário sobre o Flávio, está tudo no site feira www.feiramiolos.com.br.

João — Tem algumas coisas no perfil da biblioteca e outras no perfil da Lote 42.

Cecilia — Sobre o futuro nós vamos deixar essa parte em branco porque ainda não sabemos o que vai acontecer nessa nova edição. Sabemos que vai ser presencial, mas não há muito mais que podemos comentar.

João — Venha testemunhar.

Mélodi — Com certeza. Eu fiz a primeira edição presencial da Papelera pós pandemia em dezembro de 2021 e acho que foi a maior edição em termos de público. Acho que as pessoas estão querendo sair de casa, querendo ver coisas novas. Foi bem emocionante.

João — Nos avisa, queremos participar da Papelera. A Lote 42 já participou, só nos avisar que a gente dá um jeito para cuidar da nossa mesa ou a gente vai.

Mélodi — Estamos nessa fase de reestruturação e pensando no futuro também.

João — Eu ando lendo algumas notícias muito alentadoras sobre o futuro das feiras. Uma delas fala sobre a Amazon com problemas no seu varejo, o que é sempre bom. Outra a Netflix perdendo assinantes e tendo que fazer (o quê nas redações de jornalismo a gente chamava de passaralho) despedindo cerca de mil e poucos colaboradores numa sentada só, uns 2% da força de trabalho foi embora. E uma notícia que foi capa do Valor Econômico de sexta-feira passada dizendo que os varejistas estão voltando a investir em lojas físicas. Eu estou achando que é aquela coisa, em inglês popularizou como nature is healing, a natureza está se curando de novo, eu acho que a gente já tá voltando.

Mélodi — É uma vontade de estar na rua de novo e ocupar esses espaços. É isso aí, muito obrigada.

João — Estamos às ordens. Abraço

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