Ágora do Agora: A Relevância do Livro num Mundo Disperso

João Varella
12 min readNov 13, 2021

Uma coincidência não acadêmica, não científica, porém possivelmente literária aconteceu ao ser convidado para participar do ciclo “Por uma Lei da Bibliodiversidade”, que por sua vez deu origem a este livro. Ao receber o cordial e-mail me convocando para a mesa, última do ciclo, composta também pelos professores Ana Elisa Ribeiro, Paulo Verano e Marisa Midori Deaecto, respondi com um gracejo. “Sinto como se estivesse sendo chamado pelos Rolling Stones para tocar bateria no encerramento do Rock in Rio”. Pois nem uma hora depois do envio dessa resposta surgiu a notícia de que Charlie Watts, baterista dos Rolling Stones, morreu. Fiquei constrangido pela sincronicidade, mandei imediatamente uma nova mensagem avisando que não foi meu intuito fazer uma piada de mal gosto com o mais elegante dos Stones.

Então explico meu lugar real, aquele que nenhum gracejo consegue disfarçar. Sou jornalista, nasci em 1985. Desde 2012 administro a editora Lote 42, uma casa que tem como filosofia um processo de edição cuidadoso, priorizando a qualidade. Represento com este texto uma pequena e brava equipe.

Livros da editora Lote 42

A Lote 42 se desdobrou em 2014 na Banca Tatuí, a primeira banca de rua do país dedicada a livros independentes, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Ela fechou no início da pandemia, foi depredada. Atendeu durante o isolamento social unicamente pelo site bancatatui.com.br. No final de 2021, enquanto este texto era escrito, estava em processo de reforma para reabrir.

A Banca Tatuí

A banca, por sua vez, se expandiu na Sala Tatuí, uma livraria que atende por agendamento. Esses dois projetos, somados à loja virtual, distribuem os trabalhos de mais de 220 editoras, artistas e coletivos independentes.

Sala Tatuí

A Lote 42 ainda produz eventos importantes da cena de arte impressa. Desde 2014, a editora conduz a Feira Miolo(s), na Biblioteca Mário de Andrade. A oitava edição da Miolo(s) teve mais de 185 horas de programação cultural gratuita, formada e fortalecida graças ao esforço coletivo dos participantes.

Feira Miolo(s) na Biblioteca Mário de Andrade

Além da Miolo(s) a Lote 42 também organiza a Printa-Feira, no Sesc 24 de Maio, com um caráter de formação de público, e já produziu eventos junto a instituições como Unibes Cultural, Espaço Cultural Porto Seguro, iab (Institutos de Arquitetos do Brasil), entre muitos outros.

Além de editor-produtor e administrador, me aventuro como escritor. Escrevi seis livros, sendo os três mais recentes sobre videogames. O mais recente foi Videogame Pandemia, pela editora Elefante. Minha ligação com entretenimento digital é pessoal e profissional. Antes de fundar a Lote 42 eu era repórter de tecnologia. Tirava o meu sustento do estudo do impacto cultural das inovações digitais.

Opções de capa do livro “Videogame, a evolução da arte”

Observei a tomada da ágora, o espaço de discussão pública, pela comunicação multilateral e abundante. Um bombardeio disparado por plataformas que empregam táticas análogas a de um cassino para manter seus clientes. São oferecidas premiações em forma de curtidas e seguidores. Uma espécie de moeda virtual inventada pelas próprias empresas. Aqueles que fazem acusações graves ganham mais. Se é verdade ou não, isto é secundário.

Tuítes

Essa hiperconectividade promoveu excesso de estímulos na população mundial. Ansiedade, irritabilidade, insônia são algumas das consequências mais evidentes. O Instagram incita o suicídio de jovens, destrói a autoimagem dos mesmos, de acordo com dados internos do Facebook, a holding proprietária da rede. Destruir sanidades mentais é um mercado lucrativo e em crescimento. Um tema particularmente importante para o Brasil, onde três quartos da população se preocupam com a saúde mental.

Os livros poderiam se firmar como um abrigo nessa crise tecnológica, espiritual e intelectual que vivemos. Afinal, é um raro espaço de absoluta privacidade, sem publicidade, sem algoritmo, sem ter de aceitar duvidosos termos de acesso. Uma experiência humana profunda.

No entanto, é cada vez menor a quantidade de pessoas que reconhecem esse refúgio, os livros perdem relevância. “Não queimamos mais bibliotecas, apenas não ligamos muito para elas”.

O escaneamento dos livros não significa que haja um desinteresse por narrativas. Durante a pandemia, músicas, filmes, séries e videogame foram as linguagens preferenciais do ambiente online, segundo a pesquisa Hábitos Culturais ii (cf. Figura 1).

Itaú Cultural e Datafolha, Pesquisa Hábitos Culturais ii, jun. 2021.

O coronavírus bagunçou a economia, isso é inegável. Porém, dados anteriores à Covid-19 demonstravam queda de faturamento em praticamente todo o mundo. A concorrência é feroz, a oferta de entretenimento hoje é vasta e acessível, num arranjo monopolizado ou cartelizado por alguns poucos conglomerados. Se antes comparávamos o preço de um determinado livro a garrafas de cerveja, hoje isso se dá em meses de assinatura de streaming.

Esse cotejo só tumultua ainda mais a percepção de valor do livro no Brasil. Um debate morro acima, dificultado pelo notório déficit educacional e um poder público grande, caro e ineficiente. Cabe a nós, agentes do livro, buscarmos maneiras de remediar isso. Esquadrinhemos nossas práticas e reavaliemos processos.

Um exemplo prático que ajuda a desnudar engrenagens e mecanismos que empurram o livro à irrelevância está plasmado em uma loja do aeroporto Afonso Pena, na cidade de São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba. Mais exatamente, no setor de embarque.

Nessa área comercial nobre, cujo aluguel ultrapassa facilmente os seis dígitos, está um comércio sem qualquer atendimento humano. É uma livraria sem alma, como escrevi à Folha de S.Paulo num artigo que antecipou alguns dos pontos do presente texto.

A livraria sem alma, no aeroporto de Curitiba

Naquela loja há apenas um cartaz avisando que qualquer exemplar custa R$ 20, uma máquina de cartão para o cliente fazer a sua própria cobrança e sacolas plásticas de supermercado para embalar as obras. Sem vigilância, depende da boa vontade do cliente.

Os livros são novos. São obras de destaque como Genesis, de Robert Crumb, Pós-Tudo, de Marcos Augusto Gonçalves e Homem do Povo, de Oswald de Andrade e Pagu. Obras com preço de capa entre R$ 50 e R$ 80. Os livros estão novos, é difícil diferenciar esses produtos daqueles ofertados em uma livraria convencional.

Quem é do meio logo entende que são livros de saldo. Esse espaço disfarça como relação de confiança um severo corte de custos. A menina que roubava livros é ficção ou uma perda insignificante no caixa.

Na novilíngua dos patrões, o saldo foi batizado de “livro de oportunidade”. Em português de dia de semana são obras encalhadas. Algum empreendedor se atreve a fazer isso com vestuário, brinquedos, celular, produtos pet ou qualquer outro tipo de produto? Os livros lá estão pelo baixo valor que a sociedade dá a eles.

E como os livros chegam ao ponto de serem largados à própria sorte em um aeroporto? Se deve à prática de editar uma quantidade absurda de títulos por mês, apostando que alguns façam sucesso e banquem o faturamento total da firma. Os fracassos comerciais vão para o saldão.

São manobras contábeis feitas em escritórios fechados que acabam por atingir em cheio a percepção do leitor, alheio a esse modelo. Casos como o dessa loja, que se multiplicam em eventos como as bienais, são um percalço para uma editora requisitar o que é justo e assim remunerar os atores do processo de edição. Prejudica também as livrarias. No Brasil, em média um estabelecimento desse tipo fecha a cada três dias.

Nada contra oferecer livros baratos aos leitores, os sebos cumprem esse papel com primor. Todo editor que se preze hoje conhece métodos para confeccionar tiragens de poucas dezenas de exemplares.

Imprimir muito é um modelo de negócio armado para garantir o lucro da firma. A consequência é uma piora na qualidade geral do processo de edição. Um caso que ilustra o problema dessa prática se deu com Abecê da Liberdade. Esse livro, voltado para o público infantil, colocava crianças brincando e se divertindo em um navio que transportava pessoas escravizadas. Para Bruno Molinero:

Sobre o racismo de Abecê da Liberdade, podemos discutir se os autores brasileiros conseguiram de forma adequada construir uma narrativa e uma estética que permitam colocar crianças brincando no porão de um navio negreiro. É necessário analisar seus subtextos, se aquela cena é um convite para uma reflexão, como se dá o diálogo entre palavra e ilustração, os níveis de significados, entre outros fatores. E, a partir disso, tecer um veredito. Na minha avaliação, o livro não passa por essa peneira e não justifica a cena. Ao olhar o todo da obra, o episódio das crianças é fraco, gratuito, infeliz e pouco agrega à história. Mas não é examinando só uma página compartilhada à exaustão nas redes sociais que um juízo desse tipo é feito. Ou, ao menos, não deveria ser.

Discussão de mérito à parte, fato é que a editora reagiu, recolheu o livro, mas só depois do caso viralizar nas redes sociais. Antes disso era um produto comum, com ao menos duas edições. Milhares de exemplares foram postos em circulação. Nenhum editor veio à ágora explicar seus critérios. Pudera, é constrangedor explicar o que, nas palavras da editora Nandyala, se liga “ao caráter midiático-mercadológico da situação”, ou seja, uma “oportunidade de vendas”.

Trechos do livro Abecê da Liberdade que circularam pelas redes sociais

O objetivo é ganhar escala e diluir custos. Com sorte, o leitor irá desembolsar menos. É, porém, uma corrida impossível. Jamais o preço do livro será inferior ao entretenimento digital oferecido no esquema “consuma tudo o que puder”. Nos encaminhamos à distopia cyberpunk, com empresas mais poderosas que o estado. Autores como William Gibson, de Neuromancer, pareciam preocupados com a ascensão das zaibatsu, as empresas japonesas de tecnologia que atuam em diversos ramos, tanto que a estética nipônica permanece como uma das marcas do gênero. No entanto, quem está fazendo dessa ficção uma realidade são empresas oriundas do Vale do Silício, Seattle e outros endereços americanos.

Para reagir, é preciso entender que preço não é fator relevante. O espantalho de leitores não é o preço de capa. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura, praticamente metade dos brasileiros são não leitores. E isso porque basta ler um pedacinho de qualquer livro para ser chamado de leitor, segundo os critérios da enquete. Discussões metodológicas à parte, do total de não leitores, 84% acham livros desinteressantes — alegam falta de tempo, não gostar, não ter paciência ou preferência por outra atividade. Esse número se dá somando as pessoas que dizem não gostar, não ter tempo, entre outras justificativas fracas.

Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil

É hora do livro voltar a seduzir, encontrar sua vocação no polo oposto à quantidade, ir ao encontro da qualidade. As editoras deveriam largar seus programas de produtivismo e mergulhar no mérito de seu catálogo.

Livros precisam entregar aquilo que é único de seu meio. Sua potência é a reflexão aprofundada, a imersão naquilo que não vem pronto. Sua materialidade é uma vantagem fator decisivo mesmo nas narrativas convencionais de texto.

Ao falar disso, talvez haja uma confusão entre o que digo e a minha vivência como editor da Lote 42. Não quero dizer que os livros devam vir em forma de cartas como o Queria Ter Ficado Mais ou com luvas em serigrafia como na Coleção Gráfica Particular ou ainda em sanfona como é o Fachadas. O projeto gráfico é a parte mais visível do processo de edição, o cuidado deve acontecer em todas as etapas, até mesmo nas que não são tão óbvias. Há inúmeras possibilidades abertas para os livros em formato tradicional.

O livro Queria Ter Ficado Mais

Outra confusão que pode surgir: não quero demonizar a tecnologia, vide como se deu o seminário que origina o presente livro. Outras linguagens artísticas se adaptaram ao digital. Podemos aprender algumas lições e adaptar o que for cabível ao mundo do livro. Um dos ensinamentos é sobre a ligação com o contemporâneo. Observem o exemplo do cinema. É uma linguagem que conta com mais de um século de história. Ainda assim, as principais plataformas de audiovisual investem pesado em novas produções. É telenovela inédita em horário nobre, série Cidade Invisível, reality show bbb todo ano etc. Nada de se escorar nas reprises. O mesmo se aplica à música. João Gilberto, Tim Maia e Cartola sempre serão maravilhosos, mas estão aí Gaby Amarantos, Matuê, Pablo Vittar e Liniker para garantir um frescor na linguagem.

Gaby Amarantos

O público gosta de novidade, do agora, do próximo. A própria Lei José Xavier Cortez, a Lei da Bibliodiversidade aqui discutida, visa livros editados há doze meses. Com todos esses sinais de importância do contemporâneo, por que raios as editoras brasileiras dedicam tanta energia a nomes do passado? Pergunta espinhosa, mas de resposta fácil: domínio público. Os antigos não só desfrutam de fama, como são mais baratos. Por mais que os livros venham com paratextos e ilustrações fofas, é um corte de custos mal disfarçado. Um pensamento que, no fundo, lembra o da loja do aeroporto Afonso Pena.

Os autores de hoje podem ajudar a fortalecer o ecossistema do livro e estimular um ciclo virtuoso. É também uma atitude de consumo consciente. “Compre de artistas vivos, os mortos não precisam pagar boletos”, diz um meme.

Os escritores brasileiros atuais disputam espaço na prateleira não só com os cadáveres, mas também com um número imenso de traduções. O editor brasileiro parece ter desaprendido a se aventurar em editar uma obra de apelo popular, basta ver a lista de mais vendidos. A seção de ficção é particularmente trágica. Em 2020, nenhum dos vinte livros mais vendidos de ficção teve primeira edição no Brasil. Quem está no topo é Torto Arado, escrito pelo autor brasileiro Itamar Vieira Junior, caso de um simbolismo dilacerante. O livro foi editado primeiro em Portugal, o que exigiu que fosse importado para o Brasil, como se se tratasse da tradução de um autor brasileiro. Os direitos autorais pertencem à metrópole europeia, o Brasil, colônia eterna, paga. No momento em que este texto era publicado, Torto Arado tinha 15 edições fora de Portugal.

Capa da edição original de Torto Arado

O meio editorial confirma a histórica atitude brasileira de exportar matéria-prima e importar bens de valor agregado. Foi assim com os trilhos de ferro do século xix, é assim com a adoção tardia da rede 5g. A posição do país por regra é o de consumidor, em vez de desenvolvedor. No caso da arte impressa, o Brasil vende celulose, base da criação do papel, e compra texto escrito, pré-cozinhado. Tradutor é mais barato que autor.

Não me surpreenderá o dia em que as editoras brasileiras começarem a publicar livros em inglês para aprofundar ainda mais o corte de custos. Certamente venderão isso como “uma forma de conhecer a obra original, sem intermediários” ou um “exercício de idioma” ou qualquer bobagem dessa linhagem. Impressão e difusão de livros no idioma local é “um índice de nacionalidade, sobretudo nos Estados que se submetiam culturalmente à força de outros idiomas”, escreve Marisa Midori Deaecto, uma das organizadoras deste livro.

É compreensível a importância das traduções, é assim que escritos de fora podem ser lidos por nós. Precisamos buscar o equilíbrio. Nada contra ganhar dinheiro, desde que não faça mal aos outros, à cultura. A estrutura adequada para essa virada, esse basta nas engrenagens que estão empurrando o livro ladeira abaixo, são pequenas, sem vícios e cacoetes das companhias com proprietários estrangeiros. Ou de empresários que tenham a coragem de saber crescer sem perder a dimensão humana da literatura. Ou ainda, dos grandes publishers que se sintam provocados a resgatar o idealismo, pensar além do balancete trimestral, superar o automatismo.

É a vocação tradicional do livro ter mais calma, uma proposta importantíssima para lidar com as telas e o caos que nos rodeiam. Livros são à prova da obsolescência. Sua trajetória milenar mostra como ele sempre se adaptou ao momento sem perder relevância. Uma nova transmutação se faz necessária agora. O livro tem uma missão relevante nesse mundo disperso, talvez a mais importante de sua história. É uma batalha desigual e apaixonante.

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Este texto foi produzido com base na apresentação que fiz na mesa de encerramento do seminário “Por uma Lei da Bibliodiversidade”, organizado pelo IEA-USP, em 15 de outubro de 2021. O evento pode ser visto abaixo:

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